Estudos de Contraponto do Gradus ad Parnassum de J. J. Fux

 

Orlando Marcos Martins Mancini

www.contemplus.com.br

professor de contraponto

2018

Aloysius:

Assumo que conheças os princípios da escrita a três partes – com ou sem cantus firmus – do que já foi dito anteriormente [Em sua introdução ao estudo do contraponto a três partes, Fux enfatiza que “a composição em três partes é a mais perfeita de todas”, pois admite a utilização de tríades completas, a adição de mais vozes resulta meramente em dobramentos.]. A consideração mais importante na escrita a três vozes é obter tríades completas. Agora vamos ver que planejamento deve ser seguido e que práticas devem ser observadas na escrita da fuga a três partes. O que foi dito sobre a fuga a duas partes aplica-se aqui até o ponto onde a terceira voz entra. Esta entrada deve ocorrer quando o sujeito já foi utilizado nas outras duas entradas, com ou sem uma curta continuação livre, quaisquer que sejam a natureza e a demanda admitidas entre as partes, e qualquer que seja o julgamento cuidadoso que o compositor dita. De forma que a introdução da terceira entrada não pareça indistinta ou vaga harmonicamente, devemos iniciá-la com uma tríade perfeita ou com uma ligadura dissonante (que é uma solução melhor ) [A dissonância ligada é caracterizada como “uma das principais excelências da composição” por Fux, pois, melhora a consonância seguinte e distingue o movimento de vozes. Fux novamente recomenda seu uso no final desta discussão.].

Josephus:

Qual das duas partes precedentes deve a terceira parte seguir, e qual o intervalo que a parte deve obedecer?

Aloysius:

Como regra ela deve seguir aquela na qual o sujeito apareceu primeiro. Isto assegura uma maior variedade – uma consideração muito importante. Ainda, se o arranjo das partes parece sugerir as entradas em outro intervalo, podes seguir teu próprio julgamento e realizar os ajustes necessários à regra.

Josephus:

Existe alguma mudança possível na utilização de cadências como vós mencionastes anteriormente na discussão da escrita a duas partes?

Aloysius:

De forma alguma. De fato deveríamos evitar qualquer cadência formal ou cadência perfeita (uma cadência que exige uma terça maior [A nota sensível]) que não possam ser feitas de forma a coincidir com as entradas temáticas. Por outro lado, se existir a possibilidade de introdução do sujeito, não somente a quinta ou a terça, mas com qualquer outro intervalo que não conduza a um afastamento demasiado do modo, podemos utilizar tanto cadências perfeitas quanto cadências deceptivas.

Josephus:

O que, nobre mestre, vós quereis dizer com cadência deceptiva?

Aloysius:

Tu sabes que uma cadência perfeita ou formal conduz de uma terça-maior para uma oitava. A cadência deceptiva utiliza uma terça-menor, de forma a evitar o fechamento esperado pelo ouvido, enganando o ouvinte. Por esta razão foi nomeada inganno – engano – pelos italianos.

A cadência perfeita pode também ser evitada pela manutenção da terça-maior na parte superior e permitindo que a parte inferior abandone a oitava e assuma uma outra consonância.

Isto pode ser obtido melhor com um grande número de vozes.

Vamos ver como uma cadência perfeita pode ser utilizada mesmo com um intervalo incomum quando uma entrada temática ocorre, como no seguinte uso de nosso tema:

Este exemplo demonstra que a cadência perfeita pode ocorrer na primeira nota do tema e ilustra como as outras partes podem ser manipuladas. Agora vamos ver a cadência na segunda nota do tema.

É o suficiente para a cadência perfeita nas entradas temáticas. Agora, demonstrar-te-ei como as cadências perfeitas que vimos nas entradas temáticas podem ser evitadas. Isto pode ser feito com a ajuda de uma parte inferior, mesmo se uma terça-maior for utilizada. Vamos empregar novamente o sujeito que utilizamos em nossa primeira fuga a duas partes.

Josephus:

Porque a cadência foi admitida com frequência na escrita a duas partes e restringida na escrita a três partes?

Aloysius:

Tu te darás conta que as cadências utilizadas na escrita a duas partes eram essencialmente diferentes das cadências perfeitas. Elas eram formadas com a resolução de uma sétima para uma sexta ou de uma segunda para uma terça e não produziam o efeito pleno e problemático de um fechamento completo. Se seguirmos este pensamento profundamente, notaremos que as cadências formadas da sétima para a sexta e da segunda para terça poderiam ser entendidas como preparadoras para cadências completas, ao invés de cadências completas nelas mesmas, pois cadências completas são verdadeiramente formadas com o acréscimo de uma terceira parte, embora sem nenhuma outra mudança.

Josephus:

Eu espero, meu querido mestre, que não vos importais com minhas numerosas pequenas questões, que devem parecer-vos bem cansativas.

Aloysius:

Absolutamente, estou ansioso para ver removido o obstáculo que sei ter sido desastroso a tantos outros mestres desta arte.

Josephus:

Porque uma cadência perfeita é aceitável quando existe uma entrada temática e evitada quando não há?

Aloysius:

A cadência perfeita transmite um sentido pleno e completo de repouso. Por esta razão ela deve ser utilizada somente no final ou quando uma seção qualquer do trabalho termine e um novo sujeito assuma. Se, por outro lado, uma entrada temática aparece junto com uma cadência perfeita, ela diminui o efeito de repouso, ajuda a manter um fluxo contínuo que deve prevalecer na composição, e ainda indica que o final não foi alcançado.

Josephus:

Agora, com esta questão solucionada e com o conhecimento de tudo que foi discutido, acredito estar pronto para iniciar a escrita de fugas a três partes.

Aloysius:

Sim, tu estás. Eu ainda gostaria de mostrar-te primeiramente como a parte mais grave deve ser arranjada se as outras duas partes descendem por sucessivas sétimas resolvendo em sextas, ou por segundas resolvendo em terças. Este procedimento é de grande utilidade e te facilitará muito na escrita a três partes.

Estes exemplos mostram como quintas e sextas podem ser utilizadas numa sucessão direta [As únicas duas consonâncias que permitem o movimento conjunto em duas notas contra uma. Com a utilização destes dois intervalos, a voz que se movimenta não está por isso compromissada com a resolução de uma dissonância; está livre para entrar e continuar em qualquer direção e prosseguir num curso independente. Fux recomenda este uso de quinta e sexta novamente na discussão do próximo exemplo] e, nas partes superiores, como as sétimas devem ser resolvidas nas sextas e as segundas nas terças. Com a ajuda de tais passagens tu acharás que a escrita tornar-se-á mais fácil em qualquer voz, esteja ou não lidando com uma entrada temática, e que estarás numa posição melhor de forma a preparar as entradas do tema. Vamos prosseguir, então, utilizando os mesmos sujeitos que foram empregados na escrita a duas vozes e tratá-los em três vozes. Dar-te-ei o primeiro exemplo que deverás posteriormente seguir nos outros modos.

Fuga no modo de Ré

Não existe diferença entre o início desta fuga, se comparado com o exemplo a duas vozes, até o momento da entrada da terceira voz onde as vozes superiores estão escritas em contraponto e adaptadas numa forma cantável ao tema. O alto então repete o tema, entrando num outro intervalo do que o utilizado na primeira entrada, enquanto a parte inferior move-se livremente. Durante este tempo o soprano está em pausa sendo preparado para sua nova entrada, que segue num intervalo diferente do utilizado por esta parte anteriormente. Esta entrada ocorre numa forte dissonância que ajuda a marcar a presença do tema, e uma cadência final é evitada através da utilização de uma sexta menor. Observa que o contralto pausa por três compassos logo que apresentou o sujeito. Isto acontece por duas razões: O soprano se aproximou tanto da parte inferior que entre elas não existe espaço suficiente para o contralto; e o contralto é para reentrar brevemente com o tema. Gostaria de mencionar também que esta entrada do contralto ocorre enquanto os intervalos de quinta e sexta são utilizados, esta maneira da entrada reforça a escrita consideravelmente. Note, além disso, a entrada do tenor após este momento e as linhas melódicas sobre ele.

Josephus:

Esta entrada do tenor não parece estar escrita de acordo com a maneira prescrita, pois não está sendo executada nem com uma tríade completa nem com uma ligadura dissonante, mas, somente com uma combinação de uma sexta e de uma oitava.

Aloysius:

Estou extremamente feliz por perceber que nada te escapa. Mas deves entender que na escrita desta entrada seguimos nossa própria escolha ao invés das regras. Além disso, a primeira nota do tema, sendo uma mínima, tem menos peso de impacto, e a sexta sobre ela é forte e facilmente perceptível. Assim ela marca o início do tema claramente engendrado pelo acorde incompleto. Isto responde a tua questão?

Josephus:

Sim, realmente.

Aloysius:

Vamos então prosseguir com a discussão sobre esta fuga. Note as linhas que acompanham esta entrada temática e suas continuidades que, como podes perceber, conduz a Fá. O efeito desta cadência é minimizado, entretanto, pela entrada do tenor imediatamente depois das pausas. Então, com mudanças sutis nos valores das notas, o que possibilita que as partes possam entrar sucessivamente por vários compassos com o sujeito, a fuga é terminada com uma cadência final.

Josephus:

De vosso exemplo e do que foi dito posso deduzir que uma pausa não deveria ser utilizada a menos que imediatamente seguida pela entrada do tema.

Aloysius:

Sim, é necessário depois de uma pausa introduzir ou o antigo sujeito ou um novo sujeito, que deve ser imitado também pelas outras partes, se não queres fazer por ti mesmo atente para as palavras de reprova do gospel de St. Matthew (22:12): “Friend, how camest thou in hither not having a wedding garment?”

 

Agora, no modo de Mi, quero que escrevas uma fuga a três partes desta ou de uma maneira similar. Não hesites em formar uma cadência em qualquer intervalo sempre que surgir uma oportunidade de introduzir o sujeito ao mesmo tempo. Será útil para teu trabalho se tiveres um exemplo da cadência final deste modo antes de iniciar, desde que é diferente dos outros modos.

Fuga no modo de Mi

Josephus:

Estou ciente e preocupado, estimado mestre, que a quantidade de cadências em lá possa ser superior ao razoável.

Aloysius:

Não te preocupes, Josephus, eu certamente não te reprovarei. Demonstrastes uma habilidade surpreendente para um noviço na manipulação de teu tema e na adaptação ao modo. A frequência da cadência em lá é causada pela natureza do tema. Isto não prejudica o efeito de variedade, pois as cadências mudam em cada instância com a utilização de tons diferentes. E se parece ter certa ausência de agilidade e progresso na composição isto deve ser atribuído às restrições do sistema diatônico e especialmente a inflexibilidade deste modo. Quero te elogiar, entretanto, pela tua fina escrita melódica, na qual cada voz, equilibrada com as outras, move-se com perfeita facilidade. Prossigamos para o modo de fá e aos outros remanescentes.

Fuga no modo de Fá

Josephus:

Estou tentado tirar proveito do efeito que a escrita desta fuga produziu. Ao menos que vós encontrastes algum problema na mudança melódica combinada com a segunda entrada do sujeito na voz superior.

Aloysius:

Pelo contrário, penso que este dispositivo é utilizado com muita engenhosidade. Já que todos os elementos da composição estão vinculados as limitações do sistema diatônico e do modo e, por isso, deve-se seguir um curso convencional, é obvio que qualquer originalidade na manipulação do tema pode ser obtida somente com tratamentos deste tipo. Estou também satisfeito por notar que as entradas temáticas sempre ocorrem no tempo certo e comportam-se de acordo com as regras do contraponto.

 

Agora, o modo de Sol.

Fuga no modo de Sol

Fuga no modo de Lá

Fuga no modo de Dó

Aloysius:

Eu me sinto muito gratificado não só pelo inicio de teu trabalho no estudo prático da fuga, como também pelo progresso obtido, como fica demonstrado pela tua escrita. Todas as partes movem-se com muita beleza, as pausas acontecem no tempo correto e as entradas estão no lugar certo. Não pareces necessitar de mais nada neste campo da composição exceto um pouco mais de facilidade, que será obtida com o tempo e a prática. Sejas cuidadoso, entretanto, com a possibilidade de utilização e a frequência de notas ligadas nas diversas partes. São impressionantes as vantagens que podem ser obtidas com este dispositivo no curso da composição, desde que as partes sejam distintas em seus movimentos uma das outras e tornem-se assim mais compreensíveis. Essa consideração serve não somente aqui, mas em qualquer estilo de composição. Finalmente, desde que a triplicidade expressa perfeição, gostaria de pedir que te devotes a este estudo novamente e novamente, de modo que percebas quanta ajuda e facilidade pode ser alcançada na escrita a mais de três partes. Agora, vamos à escrita a quatro partes.

[O texto do livro prossegue com:]

Fugas a Quatro Partes

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