Estudos de Contraponto do Gradus ad Parnassum de J. J. Fux

 

Orlando Marcos Martins Mancini

www.contemplus.com.br

professor de contraponto

2018

Aloysius:

Te ensinarei primeiro como escrever fugas simples a duas partes. Escolhas um sujeito consistindo de poucas notas que esteja relacionado com o modo que queiras trabalhar. Quero que tu escrevas as notas na parte que decidistes começar. Então, se nada tiver de ser alterado por causa do modo, utilizes a mesma sucessão de notas na parte seguinte à distância de quarta ou de quinta [Quarta abaixo ou a quinta acima]. Agora, escrevas um contraponto com a parte que iniciastes, utilizes qualquer sucessão livre de notas como aprendestes no contraponto ornamentado [quinta espécie]. Depois de uma curta continuação de figuras melódicas, arranjes as partes de forma a poder realizar a primeira cadência na quinta do modo. Então reassumas o tema; como regra isto é feito na parte que iniciastes, mas, num tom diferente do que foi utilizado anteriormente. Enfatize esta entrada com a utilização de uma pausa de compasso inteiro ou de meio compasso antes de iniciar com o sujeito. A outra parte poderia, depois de uma pausa, entrar antes que a parte termine. Seguindo isto, permita que as partes se movam livremente por uma distância curta e então realize uma segunda cadência na terça do modo. Finalmente, utilizando o sujeito em qualquer parte, deixe a outra parte seguir com o sujeito diretamente no próximo compasso, se isto for possível, e assim, estreitando as partes o mais próximo possível, complete a fuga com uma cadência no final do modo.

Josephus:

Lembro que dissestes agora mesmo...

Aloysius:

Vamos postergar tua questão, pois, a incerteza pode ser melhorada com um exemplo. Utilizo o mesmo sujeito apresentado anteriormente na discussão da natureza dos modos e apresento uma fuga construída na maneira prescrita. Com este modelo creio que o caminho para teu próprio trabalho tornar-se-á mais claro.

Fuga no modo de Ré

Vês aqui o tema empregado no soprano na quinta do modo tão logo o alto o termina. Enquanto isso o alto se movimenta em contraponto ornamentado até que o tema termine na soprano. Uma continuação curta em ambas as partes conduz à cadência na quinta do modo. Depois disso, vês o sujeito repetido abaixo, na quinta do modo no contralto, sem a utilização de uma pausa prévia, mas sendo substituída por um salto, neste caso, de oitava – o soprano entra aqui numa distância menor do que a distância da entrada anterior [Fux adota a prática dos mestres renascentistas que generosamente admitem mudanças rítmicas em entradas imitativas. Os teóricos posteriores lidavam mais estritamente com a regra da imitação rítmica (cf. o comentário de Albrechtsberger abaixo do exemplo 199).], notoriamente quando o sujeito alcança o seu terceiro compasso, movendo-se livremente, enquanto isso, o contralto. Depois do sujeito ser finalizado no soprano, e depois de uma curta continuação em ambas as partes, podemos notar a cadência na terça do modo. Se seguires este simples exemplo, aplicando-o nos outros modos, notarás, sem dúvida, que gradualmente alcançaras um completo domínio da fuga.

Josephus:

Notei que nesta fuga sustenidos e bemóis são utilizados, o que parece não estar de acordo com a regra de que não deveriam ser empregados no sistema diatônico.

Aloysius:

Esta regra deve ser entendida para temas, onde somente tons e semitons naturais devem ser utilizados, sem sustenidos e bemóis, possibilitando assim que a natureza e características do modo possam ser realizadas. É diferente na continuação livre da composição onde a utilização de sustenidos e bemóis não é somente permitido como necessário de forma a evitar a dura relação de mi contra fá que normalmente surge da seguinte maneira:

Vamos retornar agora a questão que tu quiseste formular anteriormente.

Josephus:

Na formulação da distinção entre fuga e imitação dissestes que na fuga a parte que entra posteriormente poderia iniciar somente com a quinta, oitava ou uníssono. Mas depois disso, na escrita da fuga, mencionastes também a quarta.

Aloysius:

Na primeira instância consideramos o tom fundamental,

com o qual a quarta não é formada. Na segunda instância, entretanto, o tom fundamental não aparece, consideramos então a parte acima.

Mesmo neste caso o tom lá deve ser considerado como quinta do tom de ré, ou seja, o ré deve ser entendido como abaixo do lá. Assim, no próximo exemplo, a segunda parte deve ser julgada como uma entrada de quinta.

Josephus:

Por que algumas notas do tema têm seus valores alterados no final da fuga?

Aloysius:

Gostaria de dizer que não somente é permitido ligar algumas notas livres de vez em quando, mas que isto acrescenta certo charme particular a composição. Tais divisões podem mesmo ser necessárias permitindo que várias partes utilizando o sujeito e entrando mais estreitamente, uma após a outra, possam ser combinadas. Quero agora que tentes construir uma fuga com o próximo modo por ti mesmo. Escolha um sujeito relacionado com o segundo modo e não outro, e tente escrever uma fuga utilizando a primeira como modelo. Observes, entretanto, a seguinte diferença: No modo utilizado anteriormente, e em todos os outros modos, a primeira cadência é formada na quinta, enquanto que neste modo ela é formada na sexta. Com a adição de uma terceira voz, que exigiria a terça-maior, a progressão levaria distante demais do modo, e a relação mi contra fá, surgindo da relação com f que deverá ser utilizada posteriormente, ofenderia o ouvido. Veja o exemplo:

Agora que parece que tudo que necessitas foi discutido, estás pronto para o trabalho.

Josephus:

Deixe-me vos pedir novamente, mestre, que não vos desagrade se eu não conseguir sucesso nessa minha primeira tentativa.

Aloysius:

Não tenhas medo. Sabes que serei paciente e que estou ciente das dificuldades que este tipo de estudo apresenta aos noviços.

Fuga no modo de Mi

Josephus:

Estou seguro que este sujeito não seria relacionado a qualquer outro modo no sistema diatônico, estou ansioso em saber se o tratamento está satisfatório.

Aloysius:

Na invenção de teu sujeito demonstrastes um excelente julgamento, Josephus, e um tratamento muito habilidoso como dificilmente seria esperado de um estudante. Tu destes grande prova de um progresso extraordinário nesta arte. Agora, quero que prossigas ao modo de Fá e aos outros remanescentes.

Fuga no modo de Fá

Fuga no modo de Sol

Josephus:

Estive um pouco hesitante em escrever a segunda cadência imaginando se seria melhor escrevê-la desta ou da seguinte maneira:

Aloysius:

Esta cadência, que exige dois sustenidos, ou mesmo três se uma terceira voz é acrescentada, sai demais dos tons naturais do modo. Ela estaria mais de acordo com um dos modos transpostos, sobre os quais eu falarei mais tarde. A cadência utilizando a sétima e sexta, que escrevestes, é por isso correta. Agora vamos ao modo de lá, o quinto na ordem que adotamos. Desde que este modo difere um pouco dos outros, eu te darei um exemplo.

Fuga no modo de Lá

Josephus:

Entendi porque vós utilizastes um salto na segunda parte, indo da primeira para a segunda nota [i.e., o semitom da segunda nota para a terceira.]. O efeito do fá na segunda nota  não poderia ser expresso de outra forma. Porém, eu não sei por que, depois da primeira cadência, vós entrastes com b mi [si], uma entrada que parece não estar relacionada propriamente com o modo.

Aloysius:

Ela era necessária, pois, a primeira parte tem o tom “e”. Este tom exclui a possibilidade de uma entrada com “a”, que seria dissonante com o “e” inferior. Além do mais, este dispositivo não diminui a qualidade da composição. Pelo contrário, contribui para ela se ocorre no meio da fuga, já que o sujeito se torna mais consistente através de tal ajuste. É diferente no início de uma fuga, onde como já foi comentado, o caráter de um modo e as exigências na escolha do tom próprio para as entradas do sujeito devem ser observadas estritamente.

Josephus:

Eu encontrei grande dificuldade em escrever as entradas dos sujeitos conjuntamente mais próximas. Parece que os sujeitos devem ser pensados especialmente para que esta finalidade alcance êxito.

Aloysius:

Isto está correto. Primeiramente temos de fazer experiências com o sujeito procurando examinar as possibilidades para tal tratamento. Por isso temos de pensar cuidadosamente antes de fazer uma escolha definitiva.

 

 Posso acrescentar que talvez tenhas ouvido algumas pessoas criticar e ridicularizar tais sujeitos como sendo simples demais e sem imaginação. Não posso, num certo sentido, deixar de concordar com isto. Mas estamos imbuídos aqui, não com a finesse da invenção, mas, ao invés, com a verdadeira natureza dos modos do sistema diatônico – um sistema que tem realmente limites estreitos. Uma oportunidade maior de permitir que nossos pensamentos corram mais livremente e capturem temas mais interessantes surgirá quando admitirmos a utilização de sistemas miscigenados, sobre os quais falamos bastante na primeira parte deste trabalho. Agora, adiante para o modo de dó.

Fuga no modo de Dó

Este trabalho serve como um esboço geral e pode ser entendido como um vestíbulo através do qual o aprendizado das entradas na arte da fuga pode ser obtido. Assim como a arte da pintura não pode ser obtida sem um estudo cuidadoso do desenhar, é necessário, para um domínio das habilidades técnicas da fuga, fazer muitos exercícios de acordo com a forma prescrita, que, devo acrescentar, devem ser praticados sempre, de novo e de novo.

Josephus:

Me parece que o sistema diatônico oferece muito poucas e inadequadas possibilidades e por isso conduz necessariamente a uma invenção pobre.

Aloysius:

Sem dúvida é mais limitado do que os sistemas miscigenados e não abre um largo campo para a imaginação, mas desde que é mais adequado ao aprendizado da natureza e característica dos modos, ele é indispensável na aquisição de habilidades da escrita num estilo puro sem acompanhamento. Na verdade, é muito estimulante, desde que oferece uma boa quantidade de variedade através da necessidade da invenção de diferentes tipos de sujeitos. Vamos deixar um estudo mais exaustivo da fuga a duas partes por tua própria conta e prosseguir com a fuga a três partes.

[O texto do livro prossegue com:]

Fugas a Três Partes
Exemplo de Beethoven

Lembrando o prefácio de Alfred Mann, com os estudos de Beethoven sob a direção de Albrechtsberger, entra-se numa nova fase da instrução contrapontística.

 

Diretamente conectado com a tradição do trabalho de Fux, Albrechtsberger se afasta de uma das premissas básicas de Fux em seus ensinamentos.

 

Em suas próprias palavras, seguido por muitos outros trabalhos de orientação teórica similar, Albrechtsberger adaptou os Cantus Firmus dos exercícios do Gradus para as tonalidades maior e menor, e foi primeiramente dessa forma modificada que a herança de Fux alcançou o sempre crescente número de estudantes durante o século 19. [Pode-se notar que, pelo exemplo, a adaptação aos modos maior e menor não foi tão "completa" pois, o exercício de Beethoven porta quase todas as regras e recomendações ofertadas por Fux no procedimento modal (p. ex. - a cadência na terça do tom de Dó (Mi) é frígia (como nos exemplos de Fux)].

Albrechtsberger Beethoven

Os estudos de Beethoven foram publicados em uma edição compilada (com uma considerável licença) por Ignaz Ritter von Seyfried, um companheiro de Beethoven que também estudava com Albrechtsberger, e traduzido para o fracês (por Fétis, 1833) e para o inglês (por Pierson, 1853) [da tradução de Fétis, para o italiano por L. F. Rossi].

O exemplo a seguir foi retirado do livro de Beethoven traduzido para o italiano (da tradução de Fétis) por L. F. Rossi [Fuga a 2 vozes em Dó Maior - pp.35-36].

 

Com esse exemplo é possível perceber algumas das premissas anunciadas por Fux, mantidas por Albrechtsberger, seguidas por Beethoven.

[O texto do livro de Fux prossegue com:]

Fugas a Três Partes

CONTEMPLUS

Projeto de ensino-aprendizagem de música

 

Todos os direitos reservados: O3M - ®